CHEFES vs COZINHEIRAS
Um texto de Ruy Vieira Nery sobre as cozinheiras à antiga e os chefes da moda:
"Antigamente as cozinheiras dos bons restaurantes portugueses eram umas Senhoras rechonchudas e coradas, em geral já de idade respeitável, com nomes bem portugueses ainda a cheirar a aldeia – a D. Adozinda, a D. Felismina, a D. Gertrudes – e por vezes com uma sombra de buço que parecia fazer parte dos atributos da senioridade na profissão. Tinham começado por baixo e aprendido o ofício lentamente, espreitando por cima do ombro dos mais velhos. E tinham apurado a mão ao longo dos anos, para saberem gerir cada vez com mais mestria a arte do tempero, a ciência dos tempos de cozedura, os mistérios da regulação do lume. A escolha dos ingredientes baseava-se numa sabedoria antiga, de experiência feita, que determinava o que “pertencia” a cada prato, o que “ia” com quê, os sabores que “ligavam” ou não entre si. Traziam para a mesa verdadeiras obras de arte de culinária portuguesa, com um brio que disfarçavam com a falsa modéstia dos diminutivos – “Ora aqui está o cabritinho”, “Vamos lá ver se gosta do bacalhauzinho”, “Olhe que o agriãozinho é do meu quintal”. Ficavam depois a olhar discretamente para para nós, para nos verem na cara os sinais do prazer de cada petisco, mesmo quando à partida já tinham a certeza do triunfo, porque cada novo cliente satisfeito era como uma medalha de honra adicional. E a melhor recompensa das boas Senhoras era o apetite com que nos viam: “Mais um filetezinho?” “Mais uma batatinha assada?”.
Hoje em dia, ao que parece, nestes tempos de terminologias filtradas, já não há cozinheiros, há “chefes”, e a respectiva média etária ronda a dos demais jovens empresários de sucesso com que os vemos cruzarem-se indistintamente nas páginas da “Caras” e da “Olá”. Os nomes próprios seguem um abcedário previsivel – Afonso, Bernardo, Caetano, Diogo, Estêvao, Frederico, Gonçalo, … – e os apelidos parecem um anuário do Conselho de Nobreza, com uma profusão ostensiva de arcaismos ortográficos que funcionam como outros tantos marcadores de distinção – Vasconcellos, Athaydes, Souzas, Telles, Athouguias, Sylvas… Quase nunca os vemos, claro, porque os deuses só raramente descem do Olimpo, mas somos recebidos por um exército de divindades menores cuja principal função é darem-nos a entender o enorme privilégio que é podermos aceder a semelhante espaço tão acima do nosso habitat social natural. A explicação da lista é, por isso, um longo recitativo barroco, debitado em registo enjoado, em que, mais do que dar-nos uma ideia aproximada das escolhas possíveis, se pretende esmagar-nos com a consciência da nossa pressuposta inadequação à cerimónia em curso.
A regra de ouro é, claro, o inusitado das propostas culinárias em jogo e, preferivelmente, a sua absoluta ininteligibilidade para o cidadão comum. Mandam, pois, o bom senso e o próprio instinto de auto-defesa que se delegue na casa a escolha do menu, sabendo-se, no entanto, que não vale a pena sonhar com que pelo meio nos apareça um pobre cabrito assado no forno, um humilde sável com açorda, ou uma honesta posta de bacalhau preparada segundo qulquer das “Cem Maneiras” santificadas das nossas Avós. Seja o que Deus quiser! E começam então a chegar a “profiterolle de anchova em cama de gomos de tangerina caramelizados, com espuma de champagne”, o “ceviche de vieira com molho quente de chocolate branco e raspa de trufa”, a “ratatouille de pepino e framboesa polvilhada com canela e manjericão”, e por aí fora, em geral com largos minutos de intervalo entre cada prato e o seguinte, para nos dar tempo de meditar sobre a experiência numa espécie de retiro espiritual momentâneo…
E é de experiência que se pode aqui falar no sentido mais fugaz do termo. Deliciosa ou intragável, a oferta tende a ser, por princípio, “one time only”, porque quando o empregado anuncia, na sua meia voz enfadada, o “camarão salteado em calda de frutos silvestres e açafrão”, o uso do singular não é metafórico – é mesmo um exemplar único da espécie que se nos apresenta em toda a sua glória, ainda que possa reinar isolado no meio de um prato em que em tempos caberia um costeletão de novilho com os respectivos acompanhamentos. Se se detestar, há pelo menos a consolação de que não haverá qualquer hipótese de reincidência do crime; se se adorar – o que há que reconhecer que muitas vezes acontece – ficará apenas a memória fugidia do prazer inesperado. A função do “chefe” é proporcionar-nos no palato esta sucessão de sensações momentâneas irrepetíveis, todas elas em doses cuidadosamente homeopáticas, um pouco como as configurações sempre novas de um caleidoscópio – ou, se se preferir uma imagem mais forte, como a versão gastronómica de uma poderosa substância alucinogénea, daquelas que faziam as delícias da geração hippie dos anos 60 quando lhe davam a ver, ora elefantes cor-de-rosa, ora hipopótamos azul-celeste. Wow!
Que saudades das Donas Adozindas, das Donas Felisminas, das Donas Gertrudes, mais camponesas ainda do que citadinas, com a sua sabedoria, as suas receitas de família, a sua simplicidade, a sua fartura, o seu gosto de servir bem, o seu sentido de tradição e de comunidade!"
WE ARE ABLE TO DO OUR BEST! “É das coisas, que os sonhos são feitos.” It is about things, that dreams are made." (William Shakespeare
quarta-feira, agosto 31, 2016
domingo, agosto 28, 2016
O jornalismo tem razões para se arrepender todos os dias
OPINIÃO
O jornalismo tem
razões para se arrepender todos os dias
JOSÉ
VÍTOR MALHEIROS 23/08/2016 - 07:45
Imaginem
que o jornal online Observador, em vez de ser um órgão de propaganda da direita
neoliberal, criado e financiado por empresários conservadores empenhados em
impor na esfera política e em defender no espaço público uma agenda de
privatização de serviços públicos, desregulação económica, liberalização do
mercado de trabalho, destruição de direitos sociais e demonização do Estado,
fosse um projecto criado e financiado por pessoas ligadas à esquerda,
empenhadas em difundir um ideário de combate às desigualdades e à injustiça
social e em noticiar a actualidade a partir de um ponto de vista socialmente
empenhado e intelectualmente independente dos poderes vigentes.
É
evidente que, nessas circunstâncias, não veríamos um elemento do Observador a
ocupar um lugar cativo nos painéis de comentadores da RTP e, se por acaso esse
jornal fosse alguma vez citado por outros órgãos de comunicação social, seria
identificado como “o jornal de esquerda Observador” ou “o jornal Observador,
ligado aos meios da esquerda radical” e os jornalistas que assim o
identificassem considerariam estar a fazer uma descrição não só objectiva mas
necessária da fonte em causa.
Porque
é que isso não acontece, simetricamente, e pelas mesmas razões, com o actual
jornal Observador e porque é que este não é sempre apresentado como “o jornal
de direita Observador” ou “o jornal Observador, ligado aos meios da direita
radical”?
Isso
acontece devido à hegemonia do pensamento conservador que considera “normal”
que se seja de direita, e portanto não digno de ser sublinhado ou sequer
referido, e “anormal” que se seja progressista, e portanto exigindo referência
que sublinhe esse “desvio”. Para este pensamento hegemónico, ser de direita não
é ser nada porque essa é a posição “natural”, enquanto ser de esquerda é ser
algo “não natural”. Era precisamente pela mesma razão que, durante o Estado
Novo, os apoiantes de Salazar “não faziam política”, por muito radicais que
fossem nesse apoio em todas as facetas da sua vida, e os oposicionistas eram
considerados “políticos”.
É
evidente que os jornalistas, de direita ou de esquerda, sabem que é tão
marcadamente ideológico ser de direita como de esquerda, mas por que razão
sublinham então uma coisa e passam a outra em branco? Em certos casos, por
mimetismo irracional. Muitos querem apenas to blend in e seguem a onda, imitam
os colegas, as revistas, os famosos, os gurus que aparecem nos media – e estes
são esmagadoramente de direita mesmo quando “não falam de política”. Noutros
casos, por mimetismo premeditado. Querem apenas passar despercebidos e não pôr
em risco o seu posto de trabalho. Noutros casos por cálculo. Querem fazer
carreira, seja onde for, e aprenderam na escola de antijornalismo por onde
andaram que a adulação funciona e que não se pisam os calos dos poderosos.
Noutros caso por medo. A direita conservadora está no poder e tem o dinheiro, a
força e muito da lei do seu lado. Noutros casos, devido ao ritmo industrial de
produção imposto na maior parte das redacções, que obriga a aproveitar a
informação primária tal como chega de algum centro de poder e a republicá-la
sem tempo para a editar, reconstruir, verificar seja o que for ou sequer
pensar. Noutros casos por pura distracção, porque o vento reaccionário é tão
constante que se torna hipnótico. Noutros casos ainda, uma minoria, por
consciente adesão a um modelo ideológico que se pretende reproduzir.
Estas
circunstâncias têm todas algo em comum. São todas contrárias à deontologia que
rege o jornalismo, que obriga a uma total independência dos poderes e à adopção
de uma atitude de equidade e saudável cepticismo em relação à informação
recebida das fontes, oficiais ou não.
Seja
qual for a razão em cada caso particular, é por isso que continuamos a ver os
noticiários cheios de citações nunca contraditadas de Pedro Passos Coelho, diga
este as inanidades que disser no seu escasso léxico e por frágil que seja a sua
situação política no interior do partido, e é por isso que qualquer pergunta a
um político de esquerda está sempre dedicada a tentar encontrar brechas no
entendimento parlamentar à esquerda, mesmo quando elas têm de ser inventadas
por uma edição imaginativa. Porquê? Porque é preciso sublinhar, em cada
momento, a contranaturalidade de um governo apoiado pela esquerda. Pensamento
hegemónico da direita dixit. É também por isso que os pivots fazem uma careta
quando dizem o nome de um dirigente do PCP mas não quando dizem o nome de um
dirigente do PSD, numa demonstração de sectarismo que pode ser inconsciente,
mas não é por isso menos sectária. É por isso que, numa entrevista de Catarina
Martins publicada neste jornal, tem de ser colocada em título uma frase que dá
a ideia contrária ao pensamento expresso pela entrevistada (dando a impressão
de que, se fosse hoje, o BE não assinaria o acordo com o PS) mas que é conforme
ao ar do tempo, sempre hegemónico, da direita.
quinta-feira, agosto 18, 2016
A AMNÉSIA, O ÓDIO, A INTOLERÂNCIA, A FALTA DE VERGONHA
A AMNÉSIA, O ÓDIO, A INTOLERÂNCIA, A FALTA DE VERGONHA
Há
por aí quem afirme que a não utilização das redes sociais, em especial o
facebook, twitter e outras mais, será o mesmo que não ler jornais ou ver
televisão, no conceito de estar “fora” do Mundo em que vivemos. A justificação
é que estar presente nas redes sociais é essencial para compreender o mundo das
pessoas, a utilização dos produtos ou serviços das empresas etc. Assim sendo,
ao apresentar uma postura passiva ou até mesmo o não ter conta, não será uma
boa ideia.
Não
temos duvidas que o facebook é uma das redes sociais mais utilizadas a nível
global, e por isso há quem defenda que as redes sociais, vieram tornar a vida e
a vivência dos cidadãos mais transparente, nomeadamente no exercício de troca
de opiniões, de ideias e pensamentos, permitindo dizer o que se pensa e
“atingir” um púbico alargado, isto é ter acesso a uma “plateia” que de outro
modo nunca seria possível atingir.
Na
verdade não sei se será bem assim ou que tenhamos ganho alguma coisa com isso,
basta ter em atenção, coisas que são incessantemente repetidas, sem que, muitas
vezes, consigamos realmente perceber qual o seu significado ou o que se
pretende, naquela azáfama de ter opinião sobre tudo, falar sobre tudo, conhecer
tudo, fazendo do que poderia ser uma campo aberto e transparente do exercício
de cidadania, num verdadeiro campo de batalha verbal, expresso na forma escrita
e como prova disso é que, cada vez mais,
há demasiados comentários nas redes sociais carregados de ódio, intolerância,
insultos e extrema violência verbal.
Nesta
era dos “sabem tudo”, relembro sempre uma frase atribuída ao filósofo Sócrates “Só sei que nada sei, e o facto de saber isso, coloca-me em vantagem,
sobre aqueles que acham que sabem alguma coisa.”
Como
sabemos (não é desculpabilização por essas
atitudes e comportamentos) é mais fácil para o ser humano ter comportamentos mais
impulsivos quando não se encontra na presença do outro, isto porque, dependendo
de caso para caso, uma vez que não vai encarar a reacção e expressão do outro,
sente-se mais livre, à vontade e “protegido” para dizer o que quer e lhe
apetece, muitas vezes de uma forma menos apropriada e aqui as redes sociais são
apropriadas a essas atitudes e comportamentos.
Chegados
aqui chegou o momento de dizer ponto final! Quero ainda acrescer que cada vez
mais temos de ter presente “que a vida na nossa sociedade não
é apenas o império da liberdade individual ou das suas caricaturas. Há também a
moral, a ética, o direito, a lei.”
Nestes
tempos em que quase toda a imprensa, escrita, falada e televisiva, sofre de uma
crise de amnésia aguda, para assim estar “á
altura de alguma classe politica” o que já seria bastante grave, temos no
entanto muitas duvidas que não seja uma falta de vergonha grave, o que seria agudo!
Demagogia, mentiras, desinformação e terrorismo mediático parecem sobejar-lhes
a toda a hora e momento, num grau de impunidade nunca antes atingido.
É por isso, que para uma completa e “saudável limpeza”,
nada melhor que fechar este capítulo. E, assim faremos!
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