“Não
acredito na eternidade, na imortalidade, na alma. O que fica de mim é um rodapé
num livro de História”. (Mário Soares)
Aqui no “nosso canto”, eu soarista me confesso, o assunto foi, evidentemente, o falecimento do homem
que mais contribuiu para o nosso modelo político actual. A morte esperada
trouxe à pedra todos os sentimentos dos portugueses sobre os acontecimentos pós
25 de Abril e também a eterna avaliação da descolonização. Houve comentários
lamentáveis de ódio e ressentimento, mas sobretudo agradecimentos e louvores
por uma figura cuja estatura é indiscutível.
Alguém relembrou que a filosofia de Mário Soares bem se resume nestas suas
palavras: "Há uma certeza que sempre tive: a verdade não pertence em exclusivo a
ninguém e não há nada que substitua a tolerância"
Nós entendemos que se Mário Soares
partiu, deixou no entanto um legado de liberdade, democracia e respeito. Estes
três pilares da nossa sociedade estão para lá da partidocracia, que vive apenas
da conjuntura, e devem merecer o respeito de todos cidadãos que se revêm numa
democracia pluralista. E esses são pontos cardeais da bússola da cidadania. É
no respeito pela pessoa humana, nos seus direitos, na liberdade individual e na
força das convicções que devemos balizar comportamentos e pautar acções.
Podemos ou não concordar (e foram muitos os que ao longo dos anos, fora e
dentro do PS, manifestaram infindáveis discordâncias com as propostas e os
caminhos seguidos por Soares). Podemos ou não considerar erradas as ideias defendidas
(e ainda hoje, à esquerda e à direita, há quem expresse essa divergência).
Podemos ou não considerar que, ao ser um homem de roturas, só podia ser
acidentado o caminho por si trilhado, ao ponto de a determinação em chegar ser
muitas vezes mais importante que o modo como chegar. Como escreve Daniel
Oliveira no Expresso Diário, “o seu
percurso, as suas lealdades, até as suas convicções foram muitas vezes
sinuosas, tendo apenas a democracia como único valor constante, o que não foi pouco”.
Nesta senda, também Sousa Tavares, no seu habitual registo, aconselha “alguns
energúmenos que andam nas redes sociais a insultar a memória de Mário Soares
que, independentemente das ideias políticas, leiam a imprensa estrangeira”,
lembrando que é graças ao histórico socialista que estas mesmas pessoas “têm o
direito” de escrever o que pensam.
Apesar
de tudo temos que reconhecer que a geração que tem hoje 40/50 anos não esteve à
altura do legado do 25 de Abril. Falhou. Vai deixar aos filhos um país menos
esperançoso. O adeus a Mário Soares serve para constatar essa dolorosa verdade.
Repare-se que dizemos “obrigado” a Soares mais pelos seus primeiros 40 anos de percurso político do que pelos 30 anos que decorreram após a sua primeira presidência.
É verdade que temos de agradecer ao Presidente Soares a onda “fixe” que
libertou em vésperas da integração europeia. Mas o Soares presidente era
já um homem de um tempo novo, um tempo de normalidade democrática que não quis
ou não foi capaz de temperar. O lugar do sonho depressa foi ocupado por uma
geração oca, deslumbrada com o novo-riquismo do dinheiro a crédito, sem
densidade de vida nem de ideias, apenas ávida de facilitismo e propensa à
cumplicidade venal com os amigos das negociatas
Agradecer a Soares pelo país que nos deixou é festejar a democracia sólida
ou o Estado social eficaz. O país é hoje muito melhor, mas as suas injustiças,
a dívida, o Estado capturado pelos interesses, a pobreza e o desemprego são a
prova de que ficámos a meio caminho. Podíamos e devíamos ter andado mais. Dizer
obrigado a Soares é um acto óbvio de reconhecimento pelo que nos deixou – a
democracia liberal, o Estado social, a Europa. Mas pedir-lhe desculpa pelo
muito que se falhou não é apenas uma forma de homenagear essa geração
extraordinária de portugueses da qual Soares foi o mais completo representante:
é também uma manifestação da vontade de
recuperar os seus ideais e a sua energia, ranger os dentes, saber resistir às
dificuldades sem propaganda nem demagogia e olhar com coragem para o futuro.
Finalmente apetece-me
deixar aqui esta citação “Vi amigos de
esquerda e de Direita de olhos fixos na urna, mudos e gratos. Democratas,
todos. Pessoas como Soares, com virtudes e defeitos, vergando -se perante a
memória de alguém que esteve sempre do inequívoco lado da Liberdade. Vi homens
fardados bater a continência a chorar, e mulheres de avental a gritar " Soares é
fixe , o resto que se lixe ".porque há despedidas que são o início de um
caminho. E conseguir em vida (e na morte ) inspirar caminhadas de outros , é só
para os maiores e os mais fixes.”(Rita Ferro Rodrigues)
Armindo Bento
(economista aposentado)