quinta-feira, outubro 24, 2013

UM GOVERNO DE MENTIROSOS E ALDRABÕES!!


Encontra-se em discussão pública a Proposta de Lei nº 171/XII/2ª, entregue pelo Governo na Assembleia da República, visando a impropriamente chamada “convergência” das pensões de reforma e sobrevivência, de que são beneficiários os reformados e pensionistas da Caixa Geral de Aposentações, com idênticas prestações atribuídas no âmbito do Regime Geral da Segurança Social.
A posição da APRe! – Associação de Aposentados, Pensionistas e Reformados, associação cívica cujo objecto social consiste na defesa dos interesses e dos direitos dos referidos grupos sociais -, relativamente à Proposta de Lei em causa, é a seguinte:
1 - A Proposta de Lei alarga-se em 32 longas páginas na fundamentação (a que chama “Exposição de Motivos”), da parte propriamente dispositiva, ou normativa, do diploma – que se contém apenas nas 14 páginas finais do bloco de 46 páginas que corresponde ao texto integral da Proposta.
Tão dilatado texto justificativo, para tão pouco resultado propriamente normativo, ao inverso do que é o cânone, tem sido apontado como correspondendo à intenção do Governo de, mais do que fundamentar as normas propostas, prosseguir o objectivo de defender prévia, exaustiva e cautelarmente tais normas do juízo de censura do Tribunal Constitucional, atenta a óbvia inconstitucionalidade do diploma, se vier a ser aprovado nos termos em que se encontra formulado.
Sem embargo, a “Exposição de Motivos” constitui um perfeito exemplar do que não deve ser um texto legislativo: onde não mistifica a realidade, omite; onde não erra, engana.
A “narrativa” dessa “Exposição …” não é rigorosa nos factos nem nos números; nem é intelectual e politicamente congruente nas conclusões.
Examinemos, pois, essa parte preambular da Proposta:
2. Na página 8 – 3º parágrafo - da Exposição de Motivos”, o Governo afirma que “Tanto o sistema previdencial do regime geral como o regime de protecção social convergente” – que é o nome que o Governo dá ao sistema de protecção social da função pública – “são geridos em sistema de repartição, o que significa que as pensões em pagamento são suportadas pelas contribuições actuais dos trabalhadores e empregadores …”
Isto não é evidentemente verdade para o regime assegurado pela Caixa Geral de Aposentações, em que não vigora – nem nunca vigorou – qualquer sistema de repartição.



Como o Governo sabe, o empregador público, desde a criação da CGA, há mais de 40 anos, nunca efectuou o pagamento da contribuição patronal para a Caixa, que, ao longo de praticamente toda a sua existência, tinha como receitas próprias apenas as quotizações obrigatórias pagas pelos funcionários públicos seus subscritores, que o Estado-patrão retinha directamente por desconto no vencimento.
O fundamento apresentado pelo Estado para se furtar ao pagamento de contribuição para o sistema de protecção social dos seus trabalhadores, idêntica à que é paga pelos empregadores privados, consistia no facto de o Estado, quando as reservas e as receitas da CGA não bastassem para o pagamento dos subsídios regulamentares, se comprometer a garantir o respectivo pagamento, nos termos do artº 139º do Estatuto da Aposentação, aprovado pelo Decreto-Lei nº 498/72, de 9 de Dezembro.
A Proposta de Lei em debate arrasa esse compromisso do Estado - que, no fundo, vem dizer que deixa de satisfazer essa garantia, porque acha que fica cara.
O Estado comporta-se, nisto, como o fiador de um contrato de mútuo que, interpelado pelo credor para pagamento, por insuficiência económica do primeiro devedor, vem responder que não paga.
Pois – mas, se não paga, é executado.
Ao renunciar à satisfação da obrigação de garantia do pagamento integral das pensões a que se comprometera, e em nome do qual se eximira, ao longo de décadas, ao pagamento da contribuição patronal, o Estado coloca irremediavelmente em crise o valor da segurança jurídica, que é estruturante do Estado Democrático de Direito.
 3. Não é essa a única razão pela qual se não pode considerar o sistema de pensões da Função Pública um sistema de repartição.
O Governo diz, e bem, que o sistema da repartição se traduz pelo pagamento dos benefícios em vigor por força das contribuições actuais de patrões e trabalhadores.
Mas, ao vedar, a partir de 2005, o ingresso de novos trabalhadores do Sector Público na CGA, transformando-a num grupo fechado, retirando-lhes as contribuições desses activos – e as correspondentes contribuições que o Estado, enquanto empregador, resolveu começar a pagar em 2013 para os sistemas de protecção social, de forma idêntica ao sector privado -, o Estado descaracteriza ainda mais as já nenhumas notas de repartição do sistema da CGA.
O mesmo se diga do facto – que o Governo não enuncia em ponto nenhum da “Exposição de Motivos” – de o mesmo Governo ter transformado a CGA em refém de políticas externas alheias às atribuições legais da mesma CGA, promovendo o esvaziamento dos recursos financeiros da Caixa para satisfação de políticas de contenção de gastos com salários.
É o que sucede com a promoção de reformas antecipadas – que já não são admitidas no Regime Geral da Segurança Social, mas que se mantêm no âmbito da Função Pública -, com a finalidade de reduzir a estrutura de recursos humanos da Administração do Estado – mas colocando a CGA e os seus beneficiários a pagar a conta.
Os efeitos desse expediente na estrutura de receitas da CGA tende a agravar-se, nos próximos anos. Como refere o Prof. Valadares Tavares – in Público, 29.9.2013, p. 27 -, “… nos próximos anos o défice das pensões será acrescido pelo montante resultante da redução dos salários públicos por reformas/aposentações antecipadas e como o Governo não efectua a soma algébrica entre salários e pensões, será previsível a sucessiva proposta de novos cortes sempre com o mesmo argumento.”
O mesmo se diga dos Fundos de Pensões de que o Governo se apoderou para diminuir o défice – mas cujos encargos com os benefícios foram atribuídos à CGA, sem constituição de reservas matemáticas que garantissem o seu pagamento após o esgotamento do capital de tais fundos.
No mesmo sentido, o Estado integrou na CGA os funcionários da ex-Administração Ultramarina, para o efeito da atribuição de benefícios, sem qualquer contrapartida em matéria de quotizações ou de constituição ou transferência de reservas – o que, segundo a abalizada opinião do Prof. Freitas do Amaral, corresponde a 600 milhões de euros anuais de encargos com pensões.
Segundo o mesmo Ilustre Administrativista, o pagamento de tais benefícios deveria ter sido atribuído à rubrica do Orçamento de Estado “Encargos Gerais da Nação”, não à Caixa Geral de Aposentações.
Todos os factos referidos confluem – ou convergem, mas aqui é de verdadeira convergência que se trata – no juízo de que, no que toca aos benefícios da CGA, nos não encontramos num sistema de repartição.
4. Isto é, e em resumo: o Governo vem dizer que a despesa com o pagamento de pensões no Estado é insustentável do ponto de vista financeiro, e que não pode continuar a assegurá-lo, mas tal sucede por razões que se devem à actuação do mesmo Estado.
Foi o Estado que, por razões alheias aos interesses e direitos dos seus beneficiários, conduziu a CGA à situação em que alegadamente se encontra.
Chama-se a isto, em registo erudito, “venire contra factum proprium”; e, num registo mais prosaico, “fazer o mal e a caramunha”.
Em direito, este comportamento integra a chamada má-fé.
Má-fé agravada, na medida em que como acima se refere, citando o Prof. Valadares Tavares, o desenvolvimento desta “fundamentação” servirá, nos próximos anos, para “… a sucessiva proposta de novos cortes sempre com o mesmo argumento.”
5. Na mesma página 8, 2º parágrafo, a Exposição de Motivos refere – e bem – a natureza das pensões como benefícios do 1º pilar de protecção social, assegurando prestações substitutivas dos rendimentos do trabalho.
Esta vinculação da pensão ao salário, ou ao vencimento enquanto trabalhador activo, que constitui, aliás, a base do cálculo das quotizações ou contribuições dos trabalhadores, constitui o fundamento da variação e desigualdade dos valores das pensões.
Recebe-se uma pensão correspondente ao vencimento.
Não assim no sistema assistencialista, que configura as medidas de protecção social com o uma dádiva, ou uma benesse, do Estado.
Mas, no Estado de Direito, o valor da prestação corresponde a um sinalagma do montante da quotização – e corresponde a um direito, diferenciado, como se referiu.
Ora, esta diferenciação do montante das pensões é incompatível com a lógica do diploma - nomeadamente o artº 7º, 1, a), b), c) e d) e 2., d) e e) da Proposta de Lei -, de dispensar dos cortes as pensões mais baixas – com o que se concorda, com a reserva de que a dispensa deve ser extensiva a todas as pensões -, bem com a dispensa do corte relativamente aos reformados mais idosos – com o que igualmente se concorda, com a mesma reserva.   
Ainda a este propósito, não se pode deixar de salientar uma outra contradição ínsita na Exposição de Motivos – ao, por um lado, dispensar dos cortes, como se disse, as pensões dos aposentados mais velhos; e, por outro, imputando-lhes privilégios estatutários históricos, por comparação com o regime geral e com as alterações mais recentes do Estatuto da Aposentação.
Alterações estas, restritivas, principalmente nos últimos 10 anos, quanto ao modo de formação e à forma de cálculo da pensão, afectando os aposentados mais recentes – que serão os mais discriminados negativamente pelos cortes propostos.
(O excurso histórico em que a Exposição de Motivos pretende apontar o estatuto da aposentação como privilegiado relativamente ao regime geral - também contra a verdade - consta das págs. 10 e 11 da mesma Exposição.)
6. Um outro aspecto em que as soluções propostas pelo Governo são inaceitáveis, do ponto de vista da lealdade e do respeito pela verdade que um órgão de soberania deve ao Parlamento e aos cidadãos, tem que ver com a invocação do valor da equidade como fundamento da pretensa “convergência”, que a Exposição de Motivos eleva, na pág. 4, à categoria de princípio estratégico.
Equidade que, segundo a Exposição de Motivos, tem como uma das vertentes a “equidade entre trabalhadores do sector público e do privado.”
Ora, se a “convergência” tem como objectivo prosseguir o valor da equidade, como valor substancial, percebe-se mal como a mesma Exposição de Motivos – e a Proposta de Lei, no seu artº 7º, 6. e 7. – prevê a reversibilidade dos cortes em que objectivamente se traduz a “convergência” num cenário de crescimento sustentado a médio prazo: crescimento nominal anual do PIB, em dois anos consecutivos, igual ou superior a 3% e saldo orçamental não superior a 0,5% do PIB.
Se é de equidade que se trata, não cabe reversibilidade – na medida em que esta, na lógica do Governo e da Proposta de Lei, reconduziria à actual “iniquidade”.
A questão é que esta reversibilidade é prevista para um cenário de ficção – e daí a acusação de a Proposta de Lei ter um problema com a verdade e com a lealdade com o Parlamento e os cidadãos.
Esta possibilidade não é para ser levada a sério, destinando-se apenas a desempenhar o papel de “cortina de fumo” para consumo do Tribunal Constitucional.
Com efeito, é o próprio texto da Exposição de Motivos que remete, na pág. 5, para um “… cenário de crescimento económico muito moderado no médio prazo …” – adiando a reversibilidade que teoricamente a Proposta contém para quando os actuais aposentados e pensionistas da CGA estiverem já mortos.
Também por este cinismo – intolerável num texto que pretende ser uma lei do Estado de Direito –, deverá a Proposta ser rejeitada pelos deputados que tenham da ideia da representação política democrática um conceito que o Governo manifestamente não evidencia nesta Proposta e neste registo – textual e implícito.
7. Na pág. 9 da “Exposição de Motivos”, o Governo alega que o regime da CGA deve ver a sua equidade e justiça material relativa aferida “necessariamente pela comparação das suas características com as contemporâneas definidas para o regime geral … e pela verificação se as diferenças de condições encontram justificação razoável ou suficiente.”
Lê-se – e não se acredita.
Estamos a falar de relações jurídicas duradouras, como são as que subsistem entre a CGA e os seus subscritores e beneficiários.
Um actual reformado da Função Pública com 80 anos e reformado há 20 anos, com 40 anos de serviço, tem uma relação de vinculação com a CGA com 60 anos.
Por outro lado, é princípio estruturante do sistema de pensões que o regime aplicável na determinação da passagem à situação de aposentação e do valor da pensão é o legalmente vigente à data do requerimento do funcionário – artº 43º do Estatuto da Aposentação - , princípio que a própria Exposição de Motivos considera ser matricial do regime da Caixa – pág. 19.
Quem atribuiu competência ao Governo actual para a pretensão intolerável de se vir arvorar em juiz tardio da equidade e da justiça relativa de normas e institutos jurídicos definidos pelo poder legislativo ao longo de 60 anos, à luz dos seus quadros mentais de hoje?
Só quem viveu no tempo de produção dessas normas é que, de acordo com os princípios relativos à interpretação das leis e no quadro do bloco legislativo globalmente vigente em certo momento, numa certa sociedade, poderia então aferir da justiça ou da equidade das leis.
O mesmo se diga da forma como cada cidadão rege a sua vida e gere os seus interesses e direitos, de harmonia com o quadro normativo em cada momento em vigor.
Até há 20 anos, o regime de aposentação dos funcionários públicos constituía um dos componentes do respectivo estatuto laboral, em simultâneo com o vencimento, com a segurança no emprego, com o modo de prestação do trabalho.
Muitos funcionários públicos mantiveram-se, ao longo dos tempos, ao serviço do Estado, mesmo com remunerações inferiores às correspondentes no sector privado, tendo em conta as condições de aposentação.
Este carácter global, ou em bloco, do estatuto laboral dos funcionários públicos, em que uma vertente não pode legitimamente ser separada das restantes, é sistematicamente omitido pelo Governo, que apresenta fraccionadamente cada face desse estatuto, para mais facilmente nela assestar as suas baterias.
O Governo pretende agora, com esta proposta, titulado por um mandato precário por 4 anos, desprezar ou virar do avesso 60 anos de leis emitidas por sucessivos governos, para regerem, de acordo com o que eram, em cada momento, os sentimentos da comunidade, a vida colectiva!
Não é democraticamente aceitável este quadro mental.
Já se sabe que o Governo entende poder aplicar retroactivamente novas regras de cálculo de pensões, mais penalizadoras, abrangendo situações já constituídas e consolidadas.
Esta Proposta de Lei é um exemplo desse inovador entendimento.
Mas daí a querer agora medir e definir a justiça material e equidade de normas legais emitidas há 60 anos, para justificar a adopção de medidas com as da Proposta – essas sim, iníquas, imorais e injustas - é levar longe de mais a ousadia e o despropósito.
8. Ainda a propósito do cinismo que contamina a fundamentação constante da Exposição de Motivos, não se pode ficar indiferente - embora de passagem, já que se trata de uma afirmação que não tem consequências no texto da lei proposto, mas que revela muito dos quadros mentais do seu autor – à afirmação, levada à pág. 25 da Exposição de Motivos, de que a Proposta preserva “… porém, os efeitos já produzidos das situações a alterar, que apenas são modificados para o futuro.”
Quer isto dizer, traduzindo para a linguagem corrente, que o facto de o Governo pretender alterar retroactivamente a fórmula de cálculo das pensões de aposentação e sobrevivência já atribuídas não conduzirá a que os aposentados e pensionistas tenham de devolver os montantes correspondentes aos cortes, com efeitos desde o pagamento da primeira pensão mensal que lhes foi atribuída!
Isto é, o Governo dispensa aquele beneficiário do exemplo supra, aposentado há cerca de 20 anos, de devolver ao Estado os 10% do corte relativo às pensões mensais que recebeu nesse período – 10% das 280 prestações mensais que recebeu nesse período.
É por esta dispensa que o Secretário de Estado da Administração Pública já afirmou, em público, na televisão, sem corar, que a Proposta de Lei não tem carácter retroactivo.
Afirmação reproduzida pelo Primeiro-Ministro no debate parlamentar de 4 de Outubro de 2013.
Mas a questão que se põe é se os deputados subscrevem, aprovando, um texto legislativo que contém semelhante enormidade.

9. Sobre o enquadramento económico que é apresentado como fundamento para a Proposta de Lei, a informação veiculada na Exposição de Motivos constitui, em vários pontos, uma mistificação:
Desde logo, na pág. 3, o Governo refere que “em 2013, a despesa pública total (48,6% do PIB) estará próxima da média da UE (49,2% do PIB).
Até é menor …
Mas, a esse indicador, a proposta do Governo contrapõe a discrepância entre Portugal e a mesma EU, no que toca à riqueza produzida por habitante: em Portugal, 60% da média europeia.
Não existe conexão entre os dois indicadores, pelo que a sua invocação só pode ter como objectivo uma “impressão”, ou aparência, de desproporção financeira.
Na verdade, como o PIB é a riqueza produzida num ano, a despesa pública portuguesa calculada em percentagem do PIB – 48,6%, diz a Proposta – corresponderá, em termos nominais, a 60% da média europeia.
Isto é, medidos por referência ao PIB, os 48,6% de despesa pública em Portugal não são contraponíveis, em termos nominais, aos 49,2& da média europeia.
Só o são em termos percentuais.
Mas isso nada diz quanto a dificuldades maiores no nosso País quanto a esse aspecto do enquadramento macro-económico.

10. Na pág. 16 – último parágrafo -, a Proposta adianta que “ de 1993 a 2013 … o custo com pensões subiu … de 2,31% para um valor nunca inferior a 5,5% do PIB”.
Tal não é exacto.






Remetemos de novo para o artigo do Prof. Valadares Tavares, já citado: “… o peso de todas as pensões públicas e privadas é, sem as antecipações (aposentação antecipada na FP), de apenas 0,6% do PIB e, não descontando as antecipações, é de cerca de 1,3& do PIB …” E continua no sentido da conclusão referida supra: “Apesar de os encargos com a função pública serem inferiores à média europeia …”

11. E quanto aos indicadores que a Proposta do Governo acolhe na pág. 17, relativos à necessidade de financiamento da CGA, eles correspondem à matriz de fraccionamento da informação e da realidade, por forma a apresentar apenas uma face dela, que seja propícia às intenções de corte de rendimentos dos beneficiários.
Como tem referido, quer o Prof. Valadares Tavares, quer o Dr. Bagão Félix, quer o Dr. Eugénio Rosa, a determinação honesta do défice da CGA não pode deixar de ser feita integrando a despesa e a receita da CGA no universo da despesa e da receita do sistema público de protecção social, englobando a CGA e o Centro Nacional de Pensões; e integrando-a igualmente no perímetro da despesa pública com salários.
Essa exigência de avaliação global do défice decorre das medidas de contracção da despesa pública com remunerações dos trabalhadores do Estado, com diminuição das respectivas quotizações e com a transferência para a CGA dos encargos com as aposentações antecipadas, como já foi referido.
E decorre igualmente do facto de as contribuições dos funcionários públicos admitidos nos últimos anos passarem a ser receita do Centro Nacional de Pensões, mantendo-se, porém, na CGA a obrigação do pagamento das pensões aos seus beneficiários, em regime de grupo fechado: com cessação de novas inscrições e aumento progressivo do número de reformados e pensionistas, como efeito da diminuição do contingente de funcionários do Estado e outros entes públicos.
     12. A Proposta de Lei alicerça-se igualmente no pressuposto de que o regime da CGA “inicialmente discriminava positivamente funcionários públicos face a trabalhadores do sector privado”, discriminação que viria merecendo, segundo a Proposta (pág. 18), desaprovação por banda do legislador, “que desde a primeira metade da década de 80 vem impondo a convergência de regimes.”
Nem é verdadeira a apontada discriminação positiva, nem é eticamente aceitável a enunciação da conclusão, igualmente falsa, quanto ao juízo legislativo.
Quanto à convergência, nunca o legislador, até ao mandato do actual Governo, se inclinou para efeitos retroactivos, como agora acontece; e a convergência, sempre para o futuro, traduzia-se num processo de harmonização gradual dos dois sistemas públicos de protecção social, sem afectação das situações constituídas.
A inovação legislativa no sentido apontado, de convergência súbita por defeito, ou por baixo, é exclusivo deste Governo e desta maioria – e fica mal querer meter à força nesta distorção das regras constitucionais de protecção do adquirido – artº 18º da Lei Fundamental – governos anteriores isentos deste pecado.
13. No que se refere à alegada discriminação positiva, e para além do que acima ficou dito, a Proposta limita-se a enunciar, sem fundamentação quantitativa nem qualitativa, que a mesma correspondeu, ao longo do tempo, a uma disparidade “em qualquer caso sempre superior a 10% do valor das pensões” do regime geral (pág. 12).
Trata-se, como já se disse, de uma mistificação, ou falsificação, da realidade – pelo menos no que se refere à situação-tipo, de funcionários públicos aposentados ao fim de 36 anos de contribuições para a CGA.
A Proposta refere dois exemplos em que tal discriminação seria mais óbvia: quer os regimes especiais; quer “as excepcionais condições de aposentação ou reforma, que encurtavam a carreira contributiva em vários anos – mais de 5, para gerações inteiras de pensionistas da Caixa ..”
Esquece-se de referir que tais gerações inteiras de pensionistas significa, na realidade, o universo restrito dos professores do ensino primário, como então se chamava, e correspondia a uma opção política dos Governos dessas épocas.
Quanto aos regimes especiais, especialmente os relativos ao direito à pensão completa sem o correspondente período de contribuições, e que respeita fundamentalmente a titulares de cargos políticos, não há controvérsia na sociedade quanto à necessidade de corrigir tais desvios.
14. Por outro lado, hoje é geral o conhecimento de que, no regime geral da segurança social se manipulava, em muitas situações, o montante das contribuições pagas pelos trabalhadores e empregadores, reduzindo os montantes salariais declarados nos primeiros anos da carreira contributiva e aumentando-os de forma desproporcionada nos últimos 10 anos da mesma carreira: período relevante para o cálculo da pensão inicial no regime geral.
Pelo contrário, os trabalhadores do sector público sempre contribuíram, ao longo de toda a carreira, pelas remunerações efectivamente recebidas – nem podia ser de outro modo -, sem possibilidade de manipulação do dever contributivo.
Trata-se, assim, de mera propaganda, sem qualquer adesão à realidade, quanto a Proposta refere na pág. 13., último parágrafo, relativamente à remuneração de referência para o cálculo da pensão inicial.
15. O mesmo sucede com o facto de, no regime geral, contar como ano de entrada de contribuições um período de 120 dias, enquanto na CGA só contavam anos completos.
A proposta pretende desvalorizar este aspecto, na pág. 14, 1º parágrafo, alegando que tal divergência apenas releva quanto à taxa de formação da pensão, não afectando a remuneração de referência.
Mas, num documento organizado para evidenciar desconformidades entre os dois sistemas, teria sido mais leal referir este aspecto.
16. Um outro ponto em que a Proposta se afasta da sã exposição da verdade e entra pela mistificação mais censurável é o que se pode ler na pág. 22, alínea c), do texto da mesma Proposta.
Ao tratar da – na sua versão – evolução legislativa no sentido da “convergência”, a Proposta enuncia uma medida de 2013, isto é, do actual Governo: a “revalorização das remunerações a considerar no cálculo da primeira parcela da pensão, isto é, das remunerações auferidas até 2005, com base na evolução do índice 100 da escala salarial das carreiras do regime geral da função pública – em detrimento da inflação -, por melhor se adequarem à realidade remuneratória específica da função pública.”
Pelo escrito, parece uma vantagem.
Mas a realidade é outra.
Como os salários da função pública se encontram “congelados” hás vários anos, o índice 100 não tem tido variações; pelo contrário, no mesmo período, a inflação acumulada ultrapassa os 10% - sendo certo que a inflação constitui o critério de revalorização das remunerações no regime geral da segurança social, para o efeito do cálculo da remuneração de referência.
Só com esta alteração cirúrgica, a Administração Pública logrou diminuir em mais de 6% a remuneração de referência, baixando a taxa de substituição da pensão de aposentação para 76% da remuneração mensal do cargo em 2005.
Com a aprovação da presente Proposta, com a redução da remuneração de referência para 80% da remuneração mensal de 2005, no que toca a P1, a taxa de substituição na CGA passará para 68% da remuneração mensal do cargo em 2005, revalorizado pelo Índice de Preços no Consumidor.
Isto é, a taxa de substituição ficará inferior à do regime geral.
Para um diploma que quer “convergir”, conviria não perder a oportunidade para “convergir” também neste aspecto.
Ainda quanto a este ponto, a Proposta esqueceu-se de nos explicar por que razão a revalorização das remunerações a considerar no cálculo da primeira parcela da pensão, isto é, das remunerações auferidas até 2005, com base na evolução do índice 100 da escala salarial das carreiras do regime geral da função pública – em detrimento da inflação -, melhor se adequam à realidade remuneratória específica da função pública (pág. 22)
Pois a lógica do diploma não é a unificação de regimes?
Pois a equidade não exige a convergência?
Porque há-de ficar fora da “convergência” um mecanismo, só agora introduzido, sem explicação racional – cuja única característica na lógica do diploma é discriminar negativamente o regime da CGA? 

17. Na pág. 27, 2º parágrafo, a Proposta defende a redução imediata em 10% da primeira parcela das pensões de aposentação e reforma em pagamento, em cuja fixação tenha intervindo fórmula antiga do regime da Caixa – que teria dado à grande maioria das pensões o valor de 100% da última remuneração mensal.
Ora, desde 2006 que isto não é verdade – tendo a parcela P1 da pensão sido calculada sobre 90% - hoje, 89% - da remuneração em 2005.
Não sobre 100%.
A Proposta diz que a grande maioria das pensões corresponde a 100% da última remuneração.
Mas nada refere quanto ao número dos reformados após 2005 – em que tal não é verdade nunca -, nem quantos dos reformados anteriormente a 2005 têm uma pensão igual a 100% da remuneração.
Não podendo concluir, por omissão da informação por parte do interessado, se é verdadeira ou não a asserção da Proposta, permanece apenas a sua natureza de acto de propaganda, como sucede em vários outros pontos do texto.
Permanece, no entanto, uma dúvida: se o critério do Governo, para determinar a justiça e a equidade dos cortes de 10%, se circunscreve ao facto de a maioria das pensões corresponder a 100% da remuneração, porque não deixa em paz as pensões calculadas após 2005 – já só sobre apenas 90%, e não sobre 100%, como antes?
18 – Há um outro ponto em que a fundamentação da Proposta se afigura, salvo o devido respeito, insensata, ou temerária.
É certo que a Proposta se afasta da experiência comum e inova – embora para mal -, em muitas matérias.
Mas defender, a propósito do direito à aposentação, que “a solidariedade entre gerações não pode deixar de ser bidireccional, dos trabalhadores activos para com os pensionistas, mas igualmente destes para com aqueles …”, constitui uma inovação teórica do Direito da Segurança Social que seguramente há-se arrepiar os cultores desse ramo do Direito.
Convém às vezes lembrar a quem se esqueça que o direito à aposentação, cumpridos os respectivos requisitos, constitui, como o nome indica, um direito.
Ora, os direitos têm titular: os aposentados, reformados e pensionistas.
Compete ao Estado – gestor dos fundos afectos ao exercício de tais direitos – satisfazer tais direitos.
Os aposentados são credores do Estado; O Estado é devedor dos aposentados.
É como o empréstimo bancário dado como exemplo noutro passo deste texto: não há solidariedade bidireccional entre o banco credor e o cliente devedor.
Há apenas o dever de pagamento.
É igualmente como com a troika – talvez o Governo assim entenda melhor o exemplo!: não há também aí solidariedade bidireccional entre o Estado Português e os seus credores.


Há apenas o dever de o Estado pagar os empréstimos.
Ora, defender que o credor deve ser solidário com o devedor é não fazer a mínima ideia do que seja um paradigma assente nos direitos.
Não pode ser tolerado na casa da defesa dos direitos dos cidadãos, como é a assembleia da República.

19 – A este respeito, dos contratos e dos deveres associados ao seu cumprimento, e para terminar este contributo para ao debate da Proposta de Lei, não podemos deixar de referir um breve apontamento de um Professor alemão, Emmerich Krause, retirado do Expresso on-line, a propósito do que ele chama, a propósito de Portugal, os contratos não-contratos:
“Foi este o contrato pelo qual me apaixonei e ao qual gostava de dedicar a minha obra final. Um contrato que se nega a si próprio. Um contrato que é em si um não-contrato. Um contrato que nega a sua própria existência numa vertigem demente. Um contrato que se contrai e desaparece. O exemplo mais típico e acabado deste contrato são os contratos que envolvem pensões de reforma do Estado. Num momento existem. No outro, não. Num momento, pode haver pensão. Passados uns meses, pode haver outra pensão bem mais baixa. E tudo com o mesmo contrato. No fundo, não existe contrato nenhum. Desde o astrolábio náutico que os portugueses não inventavam algo tão genial.”

Poder dizer-se que a presente Proposta de Lei constitui uma contribuição relevante do Governo Português para o próximo trabalho científico do Professor Emmerich Krause.
No que toca à APRe!, o seu parecer é, como resulta do exposto, que a Presente proposta de lei deverá ser rejeitada, por violar a lei, a Constituição e o bom senso.

Coimbra, 4 de Outubro de 2013


A Direcção da APRe!