Encontra-se em discussão pública a Proposta de Lei nº
171/XII/2ª, entregue pelo Governo na Assembleia da República, visando a
impropriamente chamada “convergência” das pensões de reforma e sobrevivência,
de que são beneficiários os reformados e pensionistas da Caixa Geral de
Aposentações, com idênticas prestações atribuídas no âmbito do Regime Geral da
Segurança Social.
A posição da APRe! – Associação de Aposentados, Pensionistas
e Reformados, associação cívica cujo objecto social consiste na defesa dos
interesses e dos direitos dos referidos grupos sociais -, relativamente à
Proposta de Lei em causa, é a seguinte:
1 - A Proposta de Lei alarga-se em 32 longas páginas na
fundamentação (a que chama “Exposição de Motivos”), da parte propriamente dispositiva,
ou normativa, do diploma – que se contém apenas nas 14 páginas finais do bloco
de 46 páginas que corresponde ao texto integral da Proposta.
Tão dilatado texto justificativo, para tão pouco resultado
propriamente normativo, ao inverso do que é o cânone, tem sido apontado como
correspondendo à intenção do Governo de, mais do que fundamentar as normas
propostas, prosseguir o objectivo de defender prévia, exaustiva e cautelarmente
tais normas do juízo de censura do Tribunal Constitucional, atenta a óbvia
inconstitucionalidade do diploma, se vier a ser aprovado nos termos em que se
encontra formulado.
Sem embargo, a “Exposição de Motivos” constitui um perfeito
exemplar do que não deve ser um texto legislativo: onde não mistifica a
realidade, omite; onde não erra, engana.
A “narrativa” dessa “Exposição …” não é rigorosa nos factos
nem nos números; nem é intelectual e politicamente congruente nas conclusões.
Examinemos, pois, essa parte preambular da Proposta:
2. Na página 8 – 3º parágrafo - da Exposição de Motivos”, o
Governo afirma que “Tanto o sistema
previdencial do regime geral como o regime de protecção social convergente”
– que é o nome que o Governo dá ao sistema de protecção social da função
pública – “são geridos em sistema de
repartição, o que significa que as pensões em pagamento são suportadas pelas
contribuições actuais dos trabalhadores e empregadores …”
Isto não é
evidentemente verdade para o regime assegurado pela Caixa Geral de
Aposentações, em que não vigora – nem nunca vigorou – qualquer sistema de
repartição.
Como o Governo sabe, o empregador público, desde a criação da
CGA, há mais de 40 anos, nunca efectuou o pagamento da contribuição patronal
para a Caixa, que, ao longo de praticamente toda a sua existência, tinha como
receitas próprias apenas as quotizações obrigatórias pagas pelos funcionários
públicos seus subscritores, que o Estado-patrão retinha directamente por
desconto no vencimento.
O fundamento apresentado pelo Estado para se furtar ao
pagamento de contribuição para o sistema de protecção social dos seus
trabalhadores, idêntica à que é paga pelos empregadores privados, consistia no
facto de o Estado, quando as reservas e as receitas da CGA não bastassem para o
pagamento dos subsídios regulamentares, se comprometer a garantir o respectivo
pagamento, nos termos do artº 139º do Estatuto da Aposentação, aprovado pelo
Decreto-Lei nº 498/72, de 9 de Dezembro.
A Proposta de Lei em debate arrasa esse compromisso do Estado
- que, no fundo, vem dizer que deixa de satisfazer essa garantia, porque acha
que fica cara.
O Estado comporta-se, nisto, como o fiador de um contrato de
mútuo que, interpelado pelo credor para pagamento, por insuficiência económica
do primeiro devedor, vem responder que não paga.
Pois – mas, se não paga, é executado.
Ao renunciar à satisfação da obrigação de garantia do
pagamento integral das pensões a que se comprometera, e em nome do qual se
eximira, ao longo de décadas, ao pagamento da contribuição patronal, o Estado
coloca irremediavelmente em crise o valor da segurança jurídica, que é
estruturante do Estado Democrático de Direito.
3. Não é essa a única
razão pela qual se não pode considerar o sistema de pensões da Função Pública
um sistema de repartição.
O Governo diz, e bem, que o sistema da repartição se traduz
pelo pagamento dos benefícios em vigor por força das contribuições actuais de
patrões e trabalhadores.
Mas, ao vedar, a partir
de 2005, o ingresso de novos trabalhadores do Sector Público na CGA,
transformando-a num grupo fechado, retirando-lhes as contribuições desses
activos – e as correspondentes contribuições que o Estado, enquanto empregador,
resolveu começar a pagar em 2013 para os sistemas de protecção social, de forma
idêntica ao sector privado -, o Estado descaracteriza ainda mais as já nenhumas
notas de repartição do sistema da CGA.
O mesmo se diga do facto – que o Governo não enuncia em ponto
nenhum da “Exposição de Motivos” – de o mesmo Governo ter transformado a CGA em
refém de políticas externas alheias às atribuições legais da mesma CGA,
promovendo o esvaziamento dos recursos financeiros da Caixa para satisfação de
políticas de contenção de gastos com salários.
É o que sucede com a promoção de reformas antecipadas – que
já não são admitidas no Regime Geral da Segurança Social, mas que se mantêm no
âmbito da Função Pública -, com a finalidade de reduzir a estrutura de recursos
humanos da Administração do Estado – mas colocando a CGA e os seus
beneficiários a pagar a conta.
Os efeitos desse expediente na estrutura de receitas da CGA
tende a agravar-se, nos próximos anos. Como refere o Prof. Valadares Tavares –
in Público, 29.9.2013, p. 27 -, “… nos próximos anos o défice das pensões será
acrescido pelo montante resultante da redução dos salários públicos por
reformas/aposentações antecipadas e como o Governo não efectua a soma algébrica
entre salários e pensões, será previsível a sucessiva proposta de novos cortes
sempre com o mesmo argumento.”
O mesmo se diga dos Fundos de Pensões de que o Governo se
apoderou para diminuir o défice – mas cujos encargos com os benefícios foram
atribuídos à CGA, sem constituição de reservas matemáticas que garantissem o
seu pagamento após o esgotamento do capital de tais fundos.
No mesmo sentido, o Estado integrou na CGA os funcionários da
ex-Administração Ultramarina, para o efeito da atribuição de benefícios, sem
qualquer contrapartida em matéria de quotizações ou de constituição ou
transferência de reservas – o que, segundo a abalizada opinião do Prof. Freitas
do Amaral, corresponde a 600 milhões de euros anuais de encargos com pensões.
Segundo o mesmo Ilustre Administrativista, o pagamento de
tais benefícios deveria ter sido atribuído à rubrica do Orçamento de Estado
“Encargos Gerais da Nação”, não à Caixa Geral de Aposentações.
Todos os factos referidos confluem – ou convergem, mas aqui é
de verdadeira convergência que se trata – no juízo de que, no que toca aos
benefícios da CGA, nos não encontramos num sistema de repartição.
4. Isto é, e em resumo: o Governo vem dizer que a despesa com
o pagamento de pensões no Estado é insustentável do ponto de vista financeiro, e
que não pode continuar a assegurá-lo, mas tal sucede por razões que se devem à
actuação do mesmo Estado.
Foi o Estado que, por razões alheias aos interesses e
direitos dos seus beneficiários, conduziu a CGA à situação em que alegadamente
se encontra.
Chama-se a isto, em registo erudito, “venire contra factum proprium”; e, num registo mais prosaico, “fazer o mal e a caramunha”.
Em direito, este
comportamento integra a chamada má-fé.
Má-fé agravada, na medida em que como acima se refere,
citando o Prof. Valadares Tavares, o desenvolvimento desta “fundamentação”
servirá, nos próximos anos, para “… a sucessiva proposta de novos cortes sempre
com o mesmo argumento.”
5. Na mesma página 8, 2º parágrafo, a Exposição de Motivos
refere – e bem – a natureza das pensões como benefícios do 1º pilar de
protecção social, assegurando prestações substitutivas dos rendimentos do
trabalho.
Esta vinculação da pensão ao salário, ou ao vencimento
enquanto trabalhador activo, que constitui, aliás, a base do cálculo das
quotizações ou contribuições dos trabalhadores, constitui o fundamento da
variação e desigualdade dos valores das pensões.
Recebe-se uma pensão correspondente ao vencimento.
Não assim no sistema assistencialista, que configura as
medidas de protecção social com o uma dádiva, ou uma benesse, do Estado.
Mas, no Estado de Direito, o valor da prestação corresponde a
um sinalagma do montante da quotização – e corresponde a um direito,
diferenciado, como se referiu.
Ora, esta diferenciação do montante das pensões é
incompatível com a lógica do diploma - nomeadamente o artº 7º, 1, a), b), c) e
d) e 2., d) e e) da Proposta de Lei -, de dispensar dos cortes as pensões mais
baixas – com o que se concorda, com a reserva de que a dispensa deve ser
extensiva a todas as pensões -, bem com a dispensa do corte relativamente aos
reformados mais idosos – com o que igualmente se concorda, com a mesma reserva.
Ainda a este propósito, não se pode deixar de salientar uma
outra contradição ínsita na Exposição de Motivos – ao, por um lado, dispensar
dos cortes, como se disse, as pensões dos aposentados mais velhos; e, por
outro, imputando-lhes privilégios estatutários históricos, por comparação com o
regime geral e com as alterações mais recentes do Estatuto da Aposentação.
Alterações estas, restritivas, principalmente nos últimos 10
anos, quanto ao modo de formação e à forma de cálculo da pensão, afectando os
aposentados mais recentes – que serão os mais discriminados negativamente pelos
cortes propostos.
(O excurso histórico em que a Exposição de Motivos pretende
apontar o estatuto da aposentação como privilegiado relativamente ao regime
geral - também contra a verdade - consta das págs. 10 e 11 da mesma Exposição.)
6. Um outro aspecto em que as soluções propostas pelo Governo
são inaceitáveis, do ponto de vista da lealdade e do respeito pela verdade que
um órgão de soberania deve ao Parlamento e aos cidadãos, tem que ver com a
invocação do valor da equidade como fundamento da pretensa “convergência”, que
a Exposição de Motivos eleva, na pág. 4, à categoria de princípio estratégico.
Equidade que, segundo a Exposição de Motivos, tem como uma
das vertentes a “equidade entre trabalhadores do sector público e do privado.”
Ora, se a “convergência” tem como objectivo prosseguir o
valor da equidade, como valor substancial, percebe-se mal como a mesma
Exposição de Motivos – e a Proposta de Lei, no seu artº 7º, 6. e 7. – prevê a
reversibilidade dos cortes em que objectivamente se traduz a “convergência” num
cenário de crescimento sustentado a médio prazo: crescimento nominal anual do
PIB, em dois anos consecutivos, igual ou superior a 3% e saldo orçamental não
superior a 0,5% do PIB.
Se é de equidade que
se trata, não cabe reversibilidade – na medida em que esta, na lógica do
Governo e da Proposta de Lei, reconduziria à actual “iniquidade”.
A questão é que esta reversibilidade é prevista para um
cenário de ficção – e daí a acusação de a Proposta de Lei ter um problema com a
verdade e com a lealdade com o Parlamento e os cidadãos.
Esta possibilidade não é para ser levada a sério,
destinando-se apenas a desempenhar o papel de “cortina de fumo” para consumo do
Tribunal Constitucional.
Com efeito, é o próprio texto da Exposição de Motivos que
remete, na pág. 5, para um “… cenário de crescimento económico muito moderado
no médio prazo …” – adiando a reversibilidade que teoricamente a Proposta
contém para quando os actuais aposentados e pensionistas da CGA estiverem já
mortos.
Também por este cinismo – intolerável num texto que pretende
ser uma lei do Estado de Direito –, deverá a Proposta ser rejeitada pelos
deputados que tenham da ideia da representação política democrática um conceito
que o Governo manifestamente não evidencia nesta Proposta e neste registo –
textual e implícito.
7. Na pág. 9 da “Exposição de Motivos”, o Governo alega que o regime da CGA deve ver a sua equidade e justiça
material relativa aferida “necessariamente pela comparação das suas
características com as contemporâneas definidas para o regime geral … e pela
verificação se as diferenças de condições encontram justificação razoável ou
suficiente.”
Lê-se – e não se acredita.
Estamos a falar de relações jurídicas duradouras, como são as
que subsistem entre a CGA e os seus subscritores e beneficiários.
Um actual reformado da Função Pública com 80 anos e reformado
há 20 anos, com 40 anos de serviço, tem uma relação de vinculação com a CGA com
60 anos.
Por outro lado, é princípio estruturante do sistema de
pensões que o regime aplicável na determinação da passagem à situação de
aposentação e do valor da pensão é o legalmente vigente à data do requerimento
do funcionário – artº 43º do Estatuto da Aposentação - , princípio que a própria Exposição de Motivos considera ser matricial
do regime da Caixa – pág. 19.
Quem atribuiu competência ao Governo actual para a pretensão
intolerável de se vir arvorar em juiz tardio da equidade e da justiça relativa
de normas e institutos jurídicos definidos pelo poder legislativo ao longo de 60
anos, à luz dos seus quadros mentais de hoje?
Só quem viveu no tempo de produção dessas normas é que, de
acordo com os princípios relativos à interpretação das leis e no quadro do
bloco legislativo globalmente vigente em certo momento, numa certa sociedade,
poderia então aferir da justiça ou da equidade das leis.
O mesmo se diga da forma como cada cidadão rege a sua vida e
gere os seus interesses e direitos, de harmonia com o quadro normativo em cada
momento em vigor.
Até há 20 anos, o regime de aposentação dos funcionários
públicos constituía um dos componentes do respectivo estatuto laboral, em
simultâneo com o vencimento, com a segurança no emprego, com o modo de
prestação do trabalho.
Muitos funcionários públicos mantiveram-se, ao longo dos
tempos, ao serviço do Estado, mesmo com remunerações inferiores às
correspondentes no sector privado, tendo em conta as condições de aposentação.
Este carácter global, ou em bloco, do estatuto laboral dos
funcionários públicos, em que uma vertente não pode legitimamente ser separada
das restantes, é sistematicamente omitido pelo Governo, que apresenta
fraccionadamente cada face desse estatuto, para mais facilmente nela assestar
as suas baterias.
O Governo pretende agora, com esta proposta, titulado por um
mandato precário por 4 anos, desprezar ou virar do avesso 60 anos de leis
emitidas por sucessivos governos, para regerem, de acordo com o que eram, em
cada momento, os sentimentos da comunidade, a vida colectiva!
Não é democraticamente aceitável este quadro mental.
Já se sabe que o Governo entende poder aplicar
retroactivamente novas regras de cálculo de pensões, mais penalizadoras, abrangendo
situações já constituídas e consolidadas.
Esta Proposta de Lei é um exemplo desse inovador
entendimento.
Mas daí a querer agora medir e definir a justiça material e
equidade de normas legais emitidas há 60 anos, para justificar a adopção de
medidas com as da Proposta – essas sim, iníquas, imorais e injustas - é levar
longe de mais a ousadia e o despropósito.
8. Ainda a propósito do cinismo que contamina a fundamentação
constante da Exposição de Motivos, não se pode ficar indiferente - embora de
passagem, já que se trata de uma afirmação que não tem consequências no texto
da lei proposto, mas que revela muito dos quadros mentais do seu autor – à
afirmação, levada à pág. 25 da Exposição de Motivos, de que a Proposta preserva
“… porém, os efeitos já produzidos das situações a alterar, que apenas são
modificados para o futuro.”
Quer isto dizer, traduzindo para a linguagem corrente, que o
facto de o Governo pretender alterar retroactivamente a fórmula de cálculo das
pensões de aposentação e sobrevivência já atribuídas não conduzirá a que os
aposentados e pensionistas tenham de devolver os montantes correspondentes aos
cortes, com efeitos desde o pagamento da primeira pensão mensal que lhes foi
atribuída!
Isto é, o Governo dispensa aquele beneficiário do exemplo
supra, aposentado há cerca de 20 anos, de devolver ao Estado os 10% do corte
relativo às pensões mensais que recebeu nesse período – 10% das 280 prestações
mensais que recebeu nesse período.
É por esta dispensa que o Secretário de Estado da
Administração Pública já afirmou, em público, na televisão, sem corar, que a
Proposta de Lei não tem carácter retroactivo.
Afirmação reproduzida pelo Primeiro-Ministro no debate
parlamentar de 4 de Outubro de 2013.
Mas a questão que se põe é se os deputados subscrevem,
aprovando, um texto legislativo que contém semelhante enormidade.
9. Sobre o enquadramento económico que é apresentado como
fundamento para a Proposta de Lei, a informação veiculada na Exposição de
Motivos constitui, em vários pontos, uma mistificação:
Desde logo, na pág. 3, o Governo refere que “em 2013, a
despesa pública total (48,6% do PIB) estará próxima da média da UE (49,2% do
PIB).
Até é menor …
Mas, a esse indicador, a proposta do Governo contrapõe a
discrepância entre Portugal e a mesma EU, no que toca à riqueza produzida por
habitante: em Portugal, 60% da média europeia.
Não existe conexão entre os dois indicadores, pelo que a sua
invocação só pode ter como objectivo uma “impressão”, ou aparência, de
desproporção financeira.
Na verdade, como o PIB é a riqueza produzida num ano, a
despesa pública portuguesa calculada em percentagem do PIB – 48,6%, diz a
Proposta – corresponderá, em termos nominais, a 60% da média europeia.
Isto é, medidos por referência ao PIB, os 48,6% de despesa
pública em Portugal não são contraponíveis, em termos nominais, aos 49,2&
da média europeia.
Só o são em termos percentuais.
Mas isso nada diz quanto a dificuldades maiores no nosso País
quanto a esse aspecto do enquadramento macro-económico.
10. Na pág. 16 – último parágrafo -, a Proposta adianta que “
de 1993 a 2013 … o custo com pensões subiu … de 2,31% para um valor nunca
inferior a 5,5% do PIB”.
Tal não é exacto.
Remetemos de novo para o artigo do Prof. Valadares Tavares,
já citado: “… o peso de todas as pensões públicas e privadas é, sem as
antecipações (aposentação antecipada na FP), de apenas 0,6% do PIB e, não
descontando as antecipações, é de cerca de 1,3& do PIB …” E continua no
sentido da conclusão referida supra: “Apesar de os encargos com a função
pública serem inferiores à média europeia …”
11. E quanto aos indicadores que a Proposta do Governo acolhe
na pág. 17, relativos à necessidade de financiamento da CGA, eles correspondem
à matriz de fraccionamento da informação e da realidade, por forma a apresentar
apenas uma face dela, que seja propícia às intenções de corte de rendimentos
dos beneficiários.
Como tem referido, quer o Prof. Valadares Tavares, quer o Dr.
Bagão Félix, quer o Dr. Eugénio Rosa, a determinação honesta do défice da CGA
não pode deixar de ser feita integrando a despesa e a receita da CGA no
universo da despesa e da receita do sistema público de protecção social,
englobando a CGA e o Centro Nacional de Pensões; e integrando-a igualmente no
perímetro da despesa pública com salários.
Essa exigência de avaliação global do défice decorre das
medidas de contracção da despesa pública com remunerações dos trabalhadores do
Estado, com diminuição das respectivas quotizações e com a transferência para a
CGA dos encargos com as aposentações antecipadas, como já foi referido.
E decorre igualmente do facto de as contribuições dos
funcionários públicos admitidos nos últimos anos passarem a ser receita do
Centro Nacional de Pensões, mantendo-se, porém, na CGA a obrigação do pagamento
das pensões aos seus beneficiários, em regime de grupo fechado: com cessação de
novas inscrições e aumento progressivo do número de reformados e pensionistas,
como efeito da diminuição do contingente de funcionários do Estado e outros
entes públicos.
12. A
Proposta de Lei alicerça-se igualmente no pressuposto de que o regime da CGA
“inicialmente discriminava positivamente funcionários públicos face a
trabalhadores do sector privado”, discriminação que viria merecendo, segundo a
Proposta (pág. 18), desaprovação por banda do legislador, “que desde a primeira
metade da década de 80 vem impondo a convergência de regimes.”
Nem é verdadeira a apontada discriminação positiva, nem é
eticamente aceitável a enunciação da conclusão, igualmente falsa, quanto ao
juízo legislativo.
Quanto à convergência, nunca o legislador, até ao mandato do
actual Governo, se inclinou para efeitos retroactivos, como agora acontece; e a
convergência, sempre para o futuro, traduzia-se num processo de harmonização
gradual dos dois sistemas públicos de protecção social, sem afectação das
situações constituídas.
A inovação legislativa no sentido apontado, de convergência
súbita por defeito, ou por baixo, é exclusivo deste Governo e desta maioria – e
fica mal querer meter à força nesta distorção das regras constitucionais de
protecção do adquirido – artº 18º da Lei Fundamental – governos anteriores
isentos deste pecado.
13. No que se refere à alegada discriminação positiva, e para
além do que acima ficou dito, a Proposta limita-se a enunciar, sem
fundamentação quantitativa nem qualitativa, que a mesma correspondeu, ao longo
do tempo, a uma disparidade “em qualquer caso sempre superior a 10% do valor
das pensões” do regime geral (pág. 12).
Trata-se, como já se disse, de uma mistificação, ou
falsificação, da realidade – pelo menos no que se refere à situação-tipo, de
funcionários públicos aposentados ao fim de 36 anos de contribuições para a
CGA.
A Proposta refere dois exemplos em que tal discriminação
seria mais óbvia: quer os regimes especiais; quer “as excepcionais condições de
aposentação ou reforma, que encurtavam a carreira contributiva em vários anos –
mais de 5, para gerações inteiras de pensionistas da Caixa ..”
Esquece-se de referir que tais gerações inteiras de
pensionistas significa, na realidade, o universo restrito dos professores do
ensino primário, como então se chamava, e correspondia a uma opção política dos
Governos dessas épocas.
Quanto aos regimes especiais, especialmente os relativos ao
direito à pensão completa sem o correspondente período de contribuições, e que
respeita fundamentalmente a titulares de cargos políticos, não há controvérsia
na sociedade quanto à necessidade de corrigir tais desvios.
14. Por outro lado, hoje é geral o conhecimento de que, no
regime geral da segurança social se manipulava, em muitas situações, o montante
das contribuições pagas pelos trabalhadores e empregadores, reduzindo os
montantes salariais declarados nos primeiros anos da carreira contributiva e
aumentando-os de forma desproporcionada nos últimos 10 anos da mesma carreira:
período relevante para o cálculo da pensão inicial no regime geral.
Pelo contrário, os trabalhadores do sector público sempre
contribuíram, ao longo de toda a carreira, pelas remunerações efectivamente
recebidas – nem podia ser de outro modo -, sem possibilidade de manipulação do
dever contributivo.
Trata-se, assim, de mera propaganda, sem qualquer adesão à
realidade, quanto a Proposta refere na pág. 13., último parágrafo,
relativamente à remuneração de referência para o cálculo da pensão inicial.
15. O mesmo sucede com o facto de, no regime geral, contar
como ano de entrada de contribuições um período de 120 dias, enquanto na CGA só
contavam anos completos.
A proposta pretende desvalorizar este aspecto, na pág. 14, 1º
parágrafo, alegando que tal divergência apenas releva quanto à taxa de formação
da pensão, não afectando a remuneração de referência.
Mas, num documento organizado para evidenciar
desconformidades entre os dois sistemas, teria sido mais leal referir este
aspecto.
16. Um outro ponto em que a Proposta se afasta da sã
exposição da verdade e entra pela mistificação mais censurável é o que se pode
ler na pág. 22, alínea c), do texto da mesma Proposta.
Ao tratar da – na sua versão – evolução legislativa no
sentido da “convergência”, a Proposta enuncia uma medida de 2013, isto é, do
actual Governo: a “revalorização das remunerações a considerar no cálculo da
primeira parcela da pensão, isto é, das remunerações auferidas até 2005, com
base na evolução do índice 100 da escala salarial das carreiras do regime geral
da função pública – em detrimento da inflação -, por melhor se adequarem à realidade
remuneratória específica da função pública.”
Pelo escrito, parece uma vantagem.
Mas a realidade é outra.
Como os salários da função pública se encontram “congelados”
hás vários anos, o índice 100 não tem tido variações; pelo contrário, no mesmo
período, a inflação acumulada ultrapassa os 10% - sendo certo que a inflação
constitui o critério de revalorização das remunerações no regime geral da
segurança social, para o efeito do cálculo da remuneração de referência.
Só com esta alteração cirúrgica, a Administração Pública
logrou diminuir em mais de 6% a remuneração de referência, baixando a taxa de
substituição da pensão de aposentação para 76% da remuneração mensal do cargo
em 2005.
Com a aprovação da presente Proposta, com a redução da
remuneração de referência para 80% da remuneração mensal de 2005, no que toca a
P1, a taxa de substituição na CGA passará para 68% da remuneração mensal do
cargo em 2005, revalorizado pelo Índice de Preços no Consumidor.
Isto é, a taxa de substituição ficará inferior à do regime
geral.
Para um diploma que quer “convergir”, conviria não perder a
oportunidade para “convergir” também neste aspecto.
Ainda quanto a este ponto, a Proposta esqueceu-se de nos
explicar por que razão a revalorização das remunerações a considerar no cálculo
da primeira parcela da pensão, isto é, das remunerações auferidas até 2005, com
base na evolução do índice 100 da escala salarial das carreiras do regime geral
da função pública – em detrimento da inflação -, melhor se adequam à realidade
remuneratória específica da função pública (pág. 22)
Pois a lógica do diploma não é a unificação de regimes?
Pois a equidade não exige a convergência?
Porque há-de ficar fora da “convergência” um mecanismo, só
agora introduzido, sem explicação racional – cuja única característica na
lógica do diploma é discriminar negativamente o regime da CGA?
17. Na pág. 27, 2º parágrafo, a Proposta defende a redução
imediata em 10% da primeira parcela das pensões de aposentação e reforma em
pagamento, em cuja fixação tenha intervindo fórmula antiga do regime da Caixa –
que teria dado à grande maioria das pensões o valor de 100% da última
remuneração mensal.
Ora, desde 2006 que isto não é verdade – tendo a parcela P1
da pensão sido calculada sobre 90% - hoje, 89% - da remuneração em 2005.
Não sobre 100%.
A Proposta diz que a grande maioria das pensões corresponde a
100% da última remuneração.
Mas nada refere quanto ao número dos reformados após 2005 –
em que tal não é verdade nunca -, nem quantos dos reformados anteriormente a
2005 têm uma pensão igual a 100% da remuneração.
Não podendo concluir, por omissão da informação por parte do
interessado, se é verdadeira ou não a asserção da Proposta, permanece apenas a
sua natureza de acto de propaganda, como sucede em vários outros pontos do
texto.
Permanece, no entanto, uma dúvida: se o critério do Governo,
para determinar a justiça e a equidade dos cortes de 10%, se circunscreve ao
facto de a maioria das pensões corresponder a 100% da remuneração, porque não
deixa em paz as pensões calculadas após 2005 – já só sobre apenas 90%, e não
sobre 100%, como antes?
18 – Há um outro ponto em que a fundamentação da Proposta se
afigura, salvo o devido respeito, insensata, ou temerária.
É certo que a Proposta se afasta da experiência comum e inova
– embora para mal -, em muitas matérias.
Mas defender, a propósito do direito à aposentação, que “a
solidariedade entre gerações não pode deixar de ser bidireccional, dos
trabalhadores activos para com os pensionistas, mas igualmente destes para com
aqueles …”, constitui uma inovação teórica do Direito da Segurança Social que
seguramente há-se arrepiar os cultores desse ramo do Direito.
Convém às vezes lembrar a quem se esqueça que o direito à
aposentação, cumpridos os respectivos requisitos, constitui, como o nome
indica, um direito.
Ora, os direitos têm titular: os aposentados, reformados e
pensionistas.
Compete ao Estado – gestor dos fundos afectos ao exercício de
tais direitos – satisfazer tais direitos.
Os aposentados são credores do Estado; O Estado é devedor dos
aposentados.
É como o empréstimo bancário dado como exemplo noutro passo
deste texto: não há solidariedade bidireccional entre o banco credor e o
cliente devedor.
Há apenas o dever de pagamento.
É igualmente como com a troika – talvez o Governo assim
entenda melhor o exemplo!: não há também aí solidariedade bidireccional entre o
Estado Português e os seus credores.
Há apenas o dever de o Estado pagar os empréstimos.
Ora, defender que o credor deve ser solidário com o devedor é
não fazer a mínima ideia do que seja um paradigma assente nos direitos.
Não pode ser tolerado na casa da defesa dos direitos dos
cidadãos, como é a assembleia da República.
19 – A este respeito, dos contratos e dos deveres associados
ao seu cumprimento, e para terminar este contributo para ao debate da Proposta
de Lei, não podemos deixar de referir um breve apontamento de um Professor
alemão, Emmerich Krause, retirado do Expresso on-line, a propósito do que ele
chama, a propósito de Portugal, os contratos não-contratos:
“Foi este o contrato pelo qual me apaixonei e ao qual gostava
de dedicar a minha obra final. Um contrato que se nega a si próprio. Um
contrato que é em si um não-contrato. Um contrato que nega a sua própria
existência numa vertigem demente. Um contrato que se contrai e desaparece. O
exemplo mais típico e acabado deste contrato são os contratos que envolvem
pensões de reforma do Estado. Num momento existem. No outro, não. Num momento,
pode haver pensão. Passados uns meses, pode haver outra pensão bem mais baixa.
E tudo com o mesmo contrato. No fundo, não existe contrato nenhum. Desde o
astrolábio náutico que os portugueses não inventavam algo tão genial.”
Poder dizer-se que a presente Proposta de Lei constitui uma
contribuição relevante do Governo Português para o próximo trabalho científico
do Professor Emmerich Krause.
No que toca à APRe!, o seu parecer é, como resulta do
exposto, que a Presente proposta de lei deverá ser rejeitada, por violar a lei,
a Constituição e o bom senso.
Coimbra, 4 de Outubro de 2013
A Direcção da APRe!