DO GRAFANIL AO BOCUZAU- CABINDA
(1970 –Agosto)
Como
consegui obter a informação (a memória de 47 anos atrás….) o “Vera Cruz” atracou no porto de Luanda em 4 de Agosto de 1970,
pelas 04:30, mas só começamos a desembarcar pelas 06:30 da manhã. Mal tivemos tempo de olhar o céu, porque assim
que saímos do navio Vera Cruz deram-nos ordem para entrar num comboio de
mercadorias que nos havia de levar a este local, o campo militar do Grafanil.
A emoção que então
nos percorria era um tanto estranha, cruzam-se nela o medo, a aventura, a
curiosidade e o espanto. A sensação que tive foi de alegria,
porque a viagem tinha corrido bem, e também de surpresa. Achei aquela terra
muito bonita, com o sol e a terra vermelhos, da cor das queimadas.
Na verdade o campo militar em rotação
permanente, o Grafanil distinguia-se dos aquartelamentos convencionais, ali
ninguém sabia bem quem era quem, uns fardados outros à civil, uma barafunda
enorme que proporcionava uns “desenfianços” para a vida boémia que a bela
cidade de Luanda oferecia,
Já ouvi muita gente
chamar-lhe campo de concentração, na verdade era ali que davam entrada todos os
militares que vinham da Metrópole e os que regressavam já depois da comissão
cumprida, mas daí a chamar-lhe “campo de concentração” na acepção mais dura da
palavra vai alguma distância, pois lá havia cinema ao ar livre, bares ao ar
livre onde na sombra de chapéus de palha se degustavam cervejas (cuca e nocal),
e até uma igreja havia com o altar embutido num embondeiro. Esta era a porta deste
campo, e uma destas casernas era a “suite dos sargentos”. (relembro que para os
oficiais a messe era em Luanda).
Lá dentro, no campo
do Grafanil, vivia-se um sentimento de
contrastes entre aqueles que chegavam, “maçaricos”, com as fardas “novinhas em
folha”, receosos de uma aventura que ali iriam começar, e outros bem
descontraídos, as fardas desbotadas e gastas pelo tempo, que em breve
despojariam no “puto”. Por vezes cruzavam-se conterrâneos, e ali mesmo se
punham as notícias em dia da “santa terrinha”.
Ainda passeámos pela
cidade de Luanda, onde ficámos até 18 desse mesmo mês de Agosto, (os primeiros
a ir para Cabinda partiram a 8 e 13 de Agosto), tendo “viajado” numa barcaça
da Marinha ‘Aríete’, que nos levou num trajecto de mais doze horas em alto-mar
rumo a norte, até Cabinda, e depois seguimos um penoso percurso por estradas e
picadas até ao Bata Sano, onde ficámos.
Mas, ainda e vou recordar alguns
sítios frequentados, em Luanda, pela malta militar. Lá era sempre Verão e por
isso algum tempo livre era passado em banhos de mar nas belas praias da Ilha
intercalados com umas imperais no bar Barracuda. Na baixa, o Polo Norte, A
Portugália, e pouco mais acima o “restaurante a Floresta” eram também locais
muito procurados. A cerveja fazia sempre parte da ementa juntamente com o
marisco que era bom e barato.
Também é verdade, segundo as minhas
memórias só quando chegámos a Luanda
soubemos que íamos para Cabinda, e isto foi motivo de alguma satisfação para
nós, que receávamos uma zona ainda mais perigosa. Foi-nos dito que o Enclave
era calmo, que a actividade do inimigo era reduzida, mas agora vejo que aquelas
palavras correspondiam mais ao desejo de nos tranquilizar do que ao de nos
transmitir a mais nua e crua verdade. Até porque chegou ao nosso conhecimento,
nas vésperas de partirmos para Cabinda, que nesse dia (17 de Agosto de 1970),
havia sido ferido com gravidade um militar da companhia 2739, que accionara uma
mina antipessoal.
A lancha da marinha Ariete (O NRP Aríete foi incorporado no efectivo dos navios da Armada em 9 de Julho de 1965. Deu apoio logístico em toda a costa angolana durante cerca de 9 ano) transportou um
terço do Batalhão de cada vez, sendo as Companhias fraccionadas para se
permitir uma sobreposição com as subunidades que íamos render. Pusemos as
nossas malas e sacos de bagagem na coberta da lancha, que os marinheiros
taparam com oleados, e aguardamos a chegada ao nosso destino. Ainda dormimos
uma noite na embarcação, sem condições para o transporte de tropa, por onde
calhou. A maioria das praças ficou-se por debaixo dos oleados. Revelando grande
espírito de sacrifício não esboçaram qualquer protesto. Valeu que ali não fazia
frio… à excepção daqueles que iam abaixo do nível das águas, tendo como
“colchão” o revestimento férreo da lancha e o céu estrelado como “telhado”,
nunca “raparam” tanto frio. Para amenizar esse “conforto”, cada um deles
tentava, por todos os meios, “enroscar-se” no meio dos outros.
Saídos no porto de Cabinda, seguimos
para o Bata Sano, a estrada já era asfaltada, até ao DINGE, a viagem até aí
fez-se sem grandes sobressaltos, mas a partir daí durante o trajecto deu para
experimentar a estranheza da paisagem que nos ia acolher durante dois anos, se
lá chegássemos. (Todos ainda nos lembramos, dos capacetes metálicos que nos
deram, e que depois desse dia, nunca mais vimos, e que a certa altura, devido
ao calor e ao olhar para aquele arvoredo que tapava a “picada” por onde as
camionetas caminhavam, retirei da cabeça ao “pensar: se for atacado isto só
atrapalha!!!.
As horas de chegada variaram, houve
quem chegasse de madrugada. O itinerário seria relativamente seguro, mas para
nós era como se já estivéssemos em plena guerra. Havia sempre o receio de nesse
dia sermos emboscados e, a sermos, não seríamos os primeiros. Éramos na gíria
“maçaricos”, militares sem experiência de combate, e o inimigo gostava de
testar tropa deste calibre, na esperança de que, com meia dúzia de tiros nos
matássemos uns aos outros. Mas felizmente não houve problemas. Pelo caminho, e
mesmo no Bata Sano, por vezes a tropa “velhinha” era por demais exuberante na
sua alegria de deixar aquele território, gritando em altos brados: “Maçaricos!”,
“Maçaricos!”, “Maçaricos!”. Certa vez, o nosso major Alcobia, oficial de
operações do Batalhão e pessoa já de certa idade, saiu mesmo da viatura e
gritou para os “velhinhos” que nos invectivavam: “Ó pá, achas-me com cara de
maçarico?!”. Eles calaram-se, respeitando a sua idade e o seu passado militar,
já com outras comissões no corpo.
O quartel do Bata Sano era constituído
por um conjunto de edifícios da antiga sede administrativa que, mais tarde, se
deslocou lá para baixo para o Buco-Zau, atravessado pela estrada que levava ao
Belize num meandro do rio Luáli. Estávamos na estação do cacimbo, bastante
seca, em que nas picadas se levantavam grandes nuvens de pó à passagem das
viaturas. (Foi aqui que estivemos entre 19 de Agosto de 1970 a 17 de Agosto de
1972)
(Base
de consulta “Pongo- número especial do Batalhão de Caçadores 2919)