A VIAGEM PARA LUANDA NO “VERA CRUZ”
Não custa muito, nos dias
que correm, ainda com tantas memórias a passarem pelo “ecrã das recordações”, escrever umas linhas sobre a viagem do
BCAC2919 no então paquete Vera Cruz, transformado em navio de transporte de
tropas e iniciada a 25 de Julho de 1970, com o seu término em Luanda, ao romper
da aurora do dia 4 de Agosto de 1970.
Depois do desfile pelos cais dessa Lisboa, cantados em tantos fados, calhou aos militares terem o seu fado, o seu fadário por terras de Angola, sem nada saberem do seu futuro. Saboreiam apenas que aquele seria incerto e que o regresso ao passado poderia não ser esse futuro. Para alguns camaradas tal veio a acontecer.
Depois do desfile pelos cais dessa Lisboa, cantados em tantos fados, calhou aos militares terem o seu fado, o seu fadário por terras de Angola, sem nada saberem do seu futuro. Saboreiam apenas que aquele seria incerto e que o regresso ao passado poderia não ser esse futuro. Para alguns camaradas tal veio a acontecer.
Quem vai para a guerra,
vive a esperança e a incerteza. Na esperança de que nada lhe aconteça e que a
roleta da guerra não pare sobre cada um em mau momento. Na incerteza, de igual
modo e pelos mesmos motivos, pois ambas andam sempre e a todo o momento de mãos
dadas.
Embarcámos em Lisboa em 25
de Julho de 1970, pelas 10 da manhã, uma hora bem escolhida, pois com os
atrasos fez-se meio-dia e, estando já pronta a refeição no navio, tivemos que
ir almoçar – alguém nos chamou, – diminuindo com isso o número de militares no
convés e o clamor das despedidas junto do cais, a evitar, embora nesta altura
ele já tivesse perdido grande parte do seu dramatismo: a visão apavorante dos
primeiros tempos da guerra. Mesmo assim, alguns militares ainda tiveram ali os
seus familiares num último adeus. O navio fez soar a sirene, grave e
autoritária, ia partir. Alguns choros se apossaram das mães, esposas e noivas
que ali se deslocaram, vindo dos mais diversos pontos do país. Houve acenos de
lenços, brados de últimas despedidas. E o navio lá seguiu, indiferente àquele
clamor e mesmo à beleza luminosa das colinas da cidade de Lisboa. Passou por
debaixo da ponte, reduzindo a um minúsculo pináculo a igreja de Santa Engrácia,
depois apequenou a Torre de Belém, saindo à barra do Tejo, nesse dia
transformado, para muitos, num vale de lágrimas. Pouco depois só se erguia cá
atrás a bruma, que era a Serra de Sintra, o último testemunho do Portugal
metropolitano e, por fim, mergulhámos no oceano infinito, rumo ao desconhecido. Éramos cerca de 3000 militares, tivemos uma viagem maravilhosa chegamos a
Luanda no dia 4 de Agosto, . A lotação do navio era de 1.242 passageiros, mas
quando transportava tropas a lotação era largamente excedida.
No “Vera Cruz” fomos
tratados com a dignidade de passageiros civis, fazendo uso dos luxos e
requintes de que o navio desfrutava, que incluía entre outros: piscina, cinema
e sala de jogos. Os oficiais ocuparam a 1.ª classe, os sargentos a 2.ª e as praças
a 3.ª ou arremedos disso, pois grande parte dos soldados dormia nos porões, em
beliches improvisados para aquelas viagens, escuros, sem as mais elementares
condições de conforto. Além disso, tinham que gramar com o ruído incomodativo
da casa das máquinas. Valia-lhes que podiam vir até ao convés apanhar ar fresco
e observar o mar, que era igual para todos, e às vezes proporcionava surpresas
agradáveis, com peixes voadores a perseguirem o navio, e outros maiores a virem
à superfície da água fazer um giro ao horizonte. Alguns militares enjoaram e
passaram por maus momentos, mesmo indo na 1.ª classe, contudo, em geral, todos
apreciaram a viagem.
A
oficialidade ocupava belas suites, sendo-lhe destinado um restaurante de luxo,
onde eram servidas refeições opíparas, com pratos cheios de enfeites
rebuscados, ao gosto da burguesia. Lembro-me de um que vinha com um artístico
moinho à vela, ostentando desfraldadas velas brancas, que servia só de adorno,
não era para comer, claro. Os sargentos também não tinham razão de queixa, e
neste aspecto, nem sequer as praças, embora tivessem de comer por mesas: saíam
uns e entravam outros. Este verdadeiro cruzeiro aos Mares do Sul só foi mesmo
afectado, dia 27 Junho, pela morte de Oliveira Salazar, já que durante o luto
por ele decretado, as salas de recreação fecharam, mas perante os nossos
protestos abriram. Nesses dias a viagem tornou-se mais monótona. À noite éramos
frequentemente atormentados com o espectro da zona militar que iríamos ocupar,
dos perigos que nos espreitariam.
Vendiam-se a bordo máquinas fotográficas, de filmar e projectar, canetas de marcas prestigiadas, rádios, relógios e outros objectos importados, fugidos aos impostos alfandegários, naquele tempo, muito elevados, que alguns aproveitaram para comprar a baixos preços.
O
elemento feminino rareava, mas ainda havia umas tantas mulheres integradas na
tripulação a humanizar o paquete e, é curioso, que à passagem pelo equador foi
dito, e até nos pareceu que se tinham tornado mais atraentes: os nossos olhos
se vidravam nelas.
O navio aportou em S. Tomé e Príncipe para largar alguns passageiros, mas ficou longe da costa, deixando-nos ver a montanha escura de bruma e mistério que era a ilha naquele dia.
O “Vera Cruz” atracou no porto de Luanda em 4 de Agosto de 1970, pelas 04:30, mas só começamos a desembarcar pelas 06:30 da manhã. Seguimos de viatura até ao Campo Militar do Grafanil, no Norte da cidade, e ali mesmo, voltámos a desfilar em continência, perante Sua Ex.ª o general Oliveira e Sousa, comandante da Região Militar de Angola. Ainda passeámos os nossos camuflados pela cidade de Luanda, onde ficámos até 8 desse mesmo mês de Julho, data a partir da qual iniciamos a nossa viagem para Cabinda, que se estendeu por mais duas “levas”, a 13 e 18 desse mesmo mês, na lancha Aríete da Marinha Portuguesa. A emoção que então nos percorria era um tanto estranha, cruzam-se nela o medo, a aventura, a curiosidade e o espanto.”
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